Há uma história que está por fazer – a dos cafés do Porto. Não a história cronológica desde quando apareceram até ao seu desaparecimento, mas a história do importante papel que esses espaços públicos, se assim se pode dizer, desempenharam como lugares do intercâmbio de ideias e centros de difusão de culturas, tanto modernas como antigas.
Nos idos de sessenta, essa verdadeira instituição portuense que foi o "café" desempenhou um papel de tal modo importante na história das artes, da literatura, do teatro e também da política, que não pode passar despercebida à análise mais ou menos crítica do cronista atento ao fenómeno cultural de uma cidade com a dimensão da do Porto.
Houve cafés nesta nossa cidade que rivalizaram com as academias e, pode mesmo dizer-se, até com a própria Universidade. Ao redor das suas mesas, com tampos de mármore ou de vidro, travaram-se autênticas batalhas de estética, deram-se a conhecer, em primeira mão, tratados, romances, poemas. Congeminaram-se formas de resistência à ditadura e deram-se a conhecer alguns planos de luta contra o poder instituído. A determinados movimentos ou correntes correspondiam determinados "cafés".
No desaparecido Rialto (ficava na Praça de D. João I) , por exemplo, reunia-se o grupos dos poetas que editavam as "Notícias do Bloqueio". Eram eles o Egito Gonçalves, o Daniel Filipe, o Papiniano Carlos, o Luís Veiga Leitão, o António Rebordão Navarro, às vezes o José Augusto Seabra e, sempre que os trabalhos jornalísticos o permitiam, o autor destas linhas, então um jovem candidato a jornalista. As "Notícias do Bloqueio", redigidas "à sombra" dos murais de Abel Salazar pintados nas paredes do café, eram, sobretudo, cadernos de poesia mas eram também e, fundamentalmente, trincheiras de combate político e tribuna de difusão de novas ideias. "Noticias do Bloqueio" é o título de um poema do Egito. Recordo-me que foi o Daniel Filipe quem sugeriu que fosse o título desse poema a servir de cabeçalho aos cadernos. A colecção completa destes cadernos é hoje raríssima e, por isso, difícil de encontrar. A sua reedição seria como que o "pontapé de saída" para a tal história dos nossos "cafés".
Outro "café" cultural era a Primus - um misto de café e confeitaria à volta de cujas mesas eram certos, a determinadas horas do dia, o arquitecto Américo Losa e a mulher, a escritora Ilse Losa; o prestigiado advogado e respeitado combatente pelas Liberdades, Artur Santos Silva; António Ramos de Almeida que orientava o Suplemento Cultural do "Jornal de Notícias", onde acolhia fraternalmente os jovens que então ensaiavam os primeiros voos artísticos, literários ou teatrais. Recordo que o Círculo de Cultura Teatral – Teatro Experimental do Porto (TEP) tinha acabado de ser fundado e funcionava, com pleno êxito, no seu teatrinho da antiga Travessa de Passos Manuel, hoje denominada Rua do Ateneu Comercial do Porto. O grande mestre do Teatro que foi o António Pedro, sempre que os seus afazeres de director do TEP lhe davam alguma folga, bem como os actores que constituíam a Companhia do Teatro, eram também certos na Primus. "Primus inter pares", assim se lhe referiu Daniel Filipe numa das belissímas crónicas que diariamente publicava no "Diário Ilustrado". Escreveu: "Há no Porto um café onde se pensa. Há no Porto um café onde se escreve. Há no Porto um café onde se discute..."
E o "Majestic", hoje uma instituição da cidade? O que esse "café" representou e representa no panorama cultural do Porto! Houve um famoso grupo de artistas que o elegeu como praça forte para as suas guerras contra o "statu quo", que o mesmo é dizer contra o imobilismo e a inércia reinantes. Foram eles o José Rodrigues, o Armando Alves, o Ângelo de Sousa e o Jorge Pinheiro que passaram à história artística do Porto com a designação de "Os Quatro Vintes". Ainda muito recentemente, num agradável convívio com três dos "Quatro Vintes" (o Zé Rodrigues, o Armando e o Ângelo) se evocou, com alguma emoção, o tratamento afectuoso de que estes artistas eram alvo por parte dos donos do "Majestic". Não há dúvida que para muitos deles, o "café", além de ser a sua Academia, era também uma espécie de lar onde podiam aquecer-se e alimentar-se, graças, muitas vezes, à generosidade de nobres gerentes hoje infelizmente esquecidos.
Outro café, inexplicável e incompreensivelmente desaparecido, mas não esquecido, e que merece ser referido aqui, pois exerceu também uma grande influência no pensamento cultural e político do século XX, foi "A Brasileira". Era frequentado, indiferentemente, por homens da esquerda e da direita. Com esta singularidade: os de esquerda sentavam-se à direita e os de direita ocupavam as mesas do lado esquerdo.
* Escritor, jornalista e editor da revista "Visão"
Texto originalmente publicado na revista "Porto de Encontro", Julho de 2001.
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